A ideia não é nova, o livro também não. Em 2003 o psicólogo norte-americano Marshall B. Rosenberg, discípulo de Carl Rogers (que havia ministrado uma conferência sobre o tema em 1964), escreveu o livro Comunicação Não Violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais, publicado no Brasil pela Ágora em 2006. Nos últimos tempos, virou moda no Brasil: cursos, oficinas, treinamentos on line pretendem ensinar os fundamentos da CNV (comunicação não violenta). A convulsão que as redes sociais produziram, uma guerra de haters v. haters, talvez tenha estimulado a redescoberta do conceito e do livro do autor.

A metodologia do autor é simples. Qualquer um pode desenvolver uma comunicação não-violenta se desenvolver a empatia, com relação aos outros e a si mesmo, que nos devolveria à nossa natureza compassiva, substituída gradualmente por um comportamento violento e de submissão dos outros a si próprio, que Rosenberg chama de “comunicação alienante, bloqueadora da compaixão, e que impede uma vida enriquecida pelo contato humano. A comunicação é um processo em que dois corações se tocam, e se ela ficar restrita ao mundo externo (entre o que eu digo e o que você faz), ela será de alguma forma violenta.

O processo consiste em converter nosso processo usual de comunicação em uma comunicação mais profunda, que se estrutura a partir de quatro perguntas: O que eu observo? Que sentimento isso causa em mim? Qual é minha necessidade? O que eu espero que o outro faça para que eu tenha minha necessidade suprida? Há algumas ideias interessantes por trás dessas perguntas.

Em primeiro lugar, tudo começa pela observação do outro, sem comparações, sem julgamento, sem usar adjetivos, que tenta descobrir o que aquela pessoa faz que nos agride sem tentar inferir os sentimentos dela (por exemplo, sem pressupor que alguém que parou o carro na porta de nossa garagem fez isso apenas para nos irritar, ou para abusar de nossos direitos). Os julgamentos que fazemos dos outros geralmente são generalizações apressadas de sua personalidade a partir de comportamentos específicos, e essa generalização apressada geralmente é falsa (por exemplo: julgamos como preguiçoso um filho que abandona o material escolar na sala, quando na verdade ele pode estar exausto por ter sido vítima de bullying na escola). Julgamentos revelam mais nossos próprios preconceitos do que a realidade de fato. Julgamentos tendem a produzir resistência e, portanto, violência na comunicação humana. Precisamos começar a CNV informando ao outro que compreendemos o que ele fez (e o motivo pelo qual ele fez isso). Isso pode ser conseguido de várias maneiras, mas uma usual consiste em parafrasear o que a outra pessoa disse para verificar se realmente compreendemos seu ponto de vista.

Em segundo lugar, é preciso entender como o que acontece interfere em meus sentimentos, e mais especificamente que sentimento meu está sendo afetado. Nem sempre isso é claro. Geralmente dizemos “você me irrita”, quando o que se passa em nós é algo muito diferente. É preciso desenvolver um vocabulário emocional que nos permita expressar claramente nosso sentimento (muitas vezes dizemos  que estamos irritados, mas estamos é frustrados, outras vezes dizemos que estamos decepcionados, mas estamos mesmos é preocupados, e assim por diante). O que os outros fazem é apenas um estímulo para o que sentimos (o sentimento é uma reação nossa).

Só podemos compreender nosso sentimento se compreendermos nossa necessidade que está sendo frustrada por aquele ato, e é preciso identificar que necessidade minha não está sendo atingida cuja frustração gera aquele sentimento em terceiro lugar.

Em quarto lugar é preciso fazer um pedido específico (não um pedido vago) para que a pessoa possa colaborar. Esse processo geralmente implica um diálogo longo em que sentimentos e necessidades de ambas as partes são verbalizados (muitas vezes eram desconhecidos por elas mesmas) para então se atingir a cooperação.

Um exemplo (dentre os inúmeros exemplos que o livro traz) é o seguinte: uma mãe está irritada com o filho porque ele deixa roupa usada espalhada pela casa. Ela poderia dizer “você é um bagunceiro, deixa roupa espalhado pela casa”. Ela apenas fez um julgamento e não realizou nenhum pedido. (É preciso realizar um pedido na comunicação porque o diferente background de cada pessoa pode levar a interpretações diferentes dessa frase. O adolescente pode pensar: ela quer que eu saia de casa, por exemplo). Se ela observasse, expressasse claramente seu sentimento, conectasse seu sentimento a uma necessidade e realizasse um pedido específico (não um pedido vago), a frase ficaria assim: “vi que você deixou duas bolas de meia na sala de TV [observação, e não julgamento], e isso me deixa frustrada [sentimento que acontece em mim como reação ao estímulo causado por ter encontrado roupa usada na sala] porque tento manter a casa organizada para que tenhamos uma vida confortável [necessidade]. Você poderia levar agora aquelas duas bolas de meia para o cesto de roupa suja e não deixar mais roupa na sala? [pedido específico]”. A estrutura geral de uma intervenção comunicativa não violenta, portanto, é a seguinte: “Quando acontece (a), sinto-me (b), porque preciso de (c). Portanto, eu gostaria que você (d)” (p. 237, modificada)

Esse processo não ocorre apenas na interação com o outro, mas também internamente, conosco mesmos. É preciso conectar-se compassivamente consigo próprio para poder me conectar compassivamente com os outros, aprender a se observar e compreender os estímulos que estão por trás de meus sentimentos, como eles afetam minhas necessidades e o que pode ser feito para mudar uma situação.

A CNV não elimina a possibilidade de ser necessário recorrer à força física, mas é preciso distinguir um uso punitivo do uso protetor da força. Quando um pai segura com força uma criança pequena que está correndo na rua, ele está usando a força física para protege-la, não para puni-la. Punir alguém pressupõe que essa pessoa seja intrinsecamente má, e que ela precisa se arrepender do que fez para mudar seu caráter, e que isso pode ser conseguindo impondo-se sofrimento a ela. Há vários dados da psicologia comportamental que invalidam esses três pressupostos, e  o livro acaba abraçando a ideia de não-violência de Gandhi (aliás, o prefácio ao livro foi escrito por um neto de Gandhi, Arun, presidente do Instituto M. K. Gandhi para a não-violência).

O livro foi concebido como fruto de treinamentos oferecidos pelo autor em sua carreira como psicólogo clínico, e é recheado de casos de sucesso (ainda que o autor reconheça que nem sempre a CNV funcione). Faltaram os exemplos negativos, em que alguém tenta usar a CNV e não consegue estabelecer uma comunicação empática. Falta também uma análise da efetividade percentual da CNV sobre a  comunicação comum (chamada de alienante). Falta também um certo aprofundamento teórico. Fica implícita a influência de Carl Rogers, Mahatma Gandhi e Martin Buber sobre o autor, e o livro poderia ser melhor se tematizasse um pouco mais esses conceitos e autores. Além disso, os casos apresentados são muito idealizados e sintetizados (o que não ocorreria em um workshop ou treinamento) e um pouco repetitivos em sua natureza, e por isso tornam o livro um pouco enfadonho.

Ainda assim, é um livro que vale à pena ser lido por aqueles que pretendem se comunicar com mais empatia e compaixão. Foi editado e aparentemente traduzido com esmero pelo editor.

Nota geral: 3,5 em 5.

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