Hoje fui homenageado, juntamente com alguns colegas, nos 70 anos da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, onde leciono há 27 anos. eis o discurso que proferi:
É uma felicidade poder reencontrar-me aqui, hoje, com tantos amigos. Minha mulher e eu temos vivido um momento de grande isolamento físico nesta pandemia, por pertencermos ao grupo de risco, e é bom que, muito gradativamente, a vida vá retomando seu fluxo normal.

Tenho passado mais de dois terços de minha vida ligado a esta Escola, primeiro como estudante, entre 1986 e 1990, e depois como professor, a partir de 1993. Começo a perceber agora que estou envelhecendo: O fato de ser um dos homenageados desperta em mim a surpresa de que o tempo passou rápido demais, do mesmo modo que ocorreu com Sêneca, quando visitava sua quinta, e descobria que as árvores estavam velhas e morrendo, árvores que ele mesmo havia plantado. Penso no Ipê amarelo, no centro do pátio de nossa Escola (que, para mim, é nosso símbolo, pelas suas raízes e por suas flores e frutos, mas também por sua brasilidade), árvore que vi ser plantanda pelo professor Boson para comemorar os cinquenta anos de nossa fundação.
Não digo isso com pesar, ao contrário: Envelhecer, ainda que traga consigo o enfraquecimento físico, também nos aproxima da sabedoria, e começamos a compreender que podemos encontrar força até em meio à nossa maior fragilidade. Sei que é um privilégio ter avançado na vida um pouco mais que muitos que ficaram para trás em um mundo marcado por profundas diferenças e injustiças, e que aquelas pessoas que partiram antes de nós talvez fossem mais dignas de ser homenageadas. Penso aqui, com muita saudade e com profundo carinho, nos nossos colegas Guilherme José Ferreira da Silva, Lusia Ribeiro Pereira e Rafael Faria Basile, dentre tantos outros.
Há setenta anos, esta Faculdade foi fundada por pessoas que acreditavam no poder regenerador do Evangelho, pessoas que acreditavam no que afirma o livro de Salmos: “A tua lei é a verdade”, Lex tua veritas. Mesmo aqueles que não creem reconhecem que a Bíblia se constitui em um monumento da Ética ocidental, uma de suas matrizes, ao lado da tradição greco-romana, e é possível encontrar nela princípios seguros para conduzir nossa civilização em tempos de crise; mas para aqueles que creem, trata-se de mais do que isso: se a própria natureza reflete a ordem do Criador, esse Deus generoso se revela também nas escrituras.
Em tempos de crise, como estes em que vivemos, em que as distâncias que separam o mais rico do mais pobre se alargam cada vez mais, em que a intolerância e o preconceito nos cegam e a arrogância nos torna surdos, em que a ganância e a avareza ameaçam fazer a Terra caminhar para sua destruição, é um alento saber que esta Faculdade foi criada sob a perspectiva profética da denúncia de todas as formas de violência e de injustiça, sob o mandamento de restituir aos pobres o que lhes pertence por direito, sob o compromisso de contribuir para superar a visão da humanidade como um mundo de sócios. Essa sua vocação deve ser entendida agora à luz da encíclica Fratelli tutti, que ensina que somos todos irmãos nessa grande casa que é nossa morada comum, e que devemos restaurar os relacionamentos à luz da paz, da dignidade humana e da solidariedade que, embora emanando do evangelho, não são sua exclusividade, mas, ao contrário, constituem o denominador comum do núcleo ético de todas as religiões, do Cristianismo, mas também do Islamismo e, diria eu, das Religiões de Matriz Africana. É exatamente quando reconhecemos que somos todos irmãos que nossa identidade cristã se consolida e se aperfeiçoa.
Essa vocação humanística de nossa Faculdade sempre destacou o papel da Filosofia na formação dos futuros juristas. É a filosofia que permite manter e dialeticamente renovar a tradição em que nos inserimos, que nos permite compreender, afinal, que a “tradição não é a veneração das cinzas, mas a propagação do fogo” (Gustav Mahler).
No passado, professores como Gerson de Britto Mello Boson e Edgard de Godoi da Matamachado, perseguidos injustamente e cassados pela ditadura militar, tiveram aqui abrigo e puderam fazer de suas aulas uma denúncia contra a violência que o regime militar impôs ao país. Ao fazê-lo, inseriram-se não somente na tradição do humanismo cristão, mas também do Iluminismo.
Poucos pensadores do Iluminismo foram tão influentes no curso da humanidade quanto Cesare Beccaria, não só pela redação do livro Dos delitos de das penas, um libelo contra a tortura e a pena de morte e obra seminal da moderna teoria da pena, mas também por sua notória influência sobre os pais fundadores dos Estados Unidos da América. Foi meu professor de Direito Penal e ex-diretor desta Casa, Antônio Augusto Mercedo Moreira, quem me apresentou a obra do filósofo italiano. Cesare Beccaria leva-me a lembrar-me do professor Guilherme Coelho Colen, não só por seu compromisso com os mesmos valores que o inspiraram, mas também por sua preocupação teórica com os temas do Direito Penal, em especial com a proporcionalidade da pena, tema caríssimo ao italiano. Conheci o professor Guilherme quando ele coordenava o curso de Direito em Betim, há quase vinte anos, e desde então ele demonstrava a disposição de um líder que o qualificaria para dirigir hoje nossa Faculdade.
Outro filósofo importante para nossos dias é o alemão Jürgen Habermas, cuja obra tive oportunidade de analisar há vinte e dois anos, em minha tese de doutorado em Filosofia do Direito. Habermas é essencial para os dias de hoje, já que fundamenta a legitimidade do Direito e da Democracia no discurso e, portanto, nos convida ao diálogo. Sua obra, Faticidade e Validade, é uma das mais importantes da Filosofia do Direito da última década do século XX, e é impossível passar pelo curso de Direito sem se ter contato com ela. Se existe uma marca distintiva do Direito Constitucional em Minas Gerais é exatamente a presença habermasiana no modo como desenvolve a reflexão sobre o Estado e a Justiça, o que me leva a pensar na oportunidade de escolhê-lo como ícone da professora Wilba Lúcia Maia Bernardes, não só por sua preocupação com a conexão entre Democracia, Direito e Estado, mas sobretudo por sua abertura ao diálogo com o outro. A professora Wilba tem sido um porto seguro para nós ao longo de todos esses anos em que ela tem coordenado o curso de Direito, e para mim em especial. Sem seu apoio, teria sido impossível que me afastasse da docência para dedicar-me, por um ano, exclusivamente à pesquisa, na Escola de Direito da Universidade de Baltimore, aliás, cidade onde nasceu John Rawls.
É impossível lembrarmo-nos de Habermas sem nos lembrarmos de outro alemão, Robert Alexy, cuja tese de doutorado, Teoria da Argumentação Jurídica, dialoga com o esforço de fundamentação do Direito no pensamento habermasiano, e cuja tese de livre docência, Teoria dos Direitos Fundamentais, reinaugurou a preocupação da Teoria do Direito com a distinção entre regras e princípios jurídicos e levou a Filosofia do Direito a afirmar a prevalência dos princípios sobre as regras em uma Democracia. Eu mesmo dediquei alguns artigos a seu pensamento, mas tenho que me calar quando o assunto é Robert Alexy, se estiver na presença do professor Alexandre Travessoni Trivisono Gomes, supervisionado em seu pós-doutorado na universidade de Kiel pelo próprio Alexy e seguramente o maior especialista latino-americano no autor alemão. O professor Alexandre lembra-me muito seu ícone, Alexy, não só pela comunidade de interesses entre ambos, mas sobretudo por seu estilo “ponderado”, sempre empático, ao lidar com seus colegas e alunos. Conheço-o desde o tempo em que ambos éramos alunos da Pós-graduação da UFMG, e sempre me impressionou seu rigor e capacidade de análise, que tem feito dele um dos maiores filósofos do Direito no Brasil.
Lembrar-me desses colegas, e dos ícones que os inspiram, também me lembra que estou envelhecendo, e, se há beleza nisso, o envelhecer também pode ser fonte de angústia. Com o passar do tempo, nossa vida vai se transformando de tal modo que o menino de oito anos que queria ser astronauta ou bombeiro dificilmente se reconheceria em um professor de uma certa idade, como eu. É quando começamos a nos perguntar se a escolhas que fizemos valeram à pena.
A transitoriedade da vida assusta a muitos, tanto a crentes como a ateus, assustava tanto a São João da Cruz quanto a Sigmund Freud, mas ela não me assusta mais. É verdade que a vida se parece com a erva que seca, tão rapidamente ela passa. Mas a mim, foi dada a graça de descobrir, neste local, que existe um ciclo, no qual ocupamos momentaneamente posições diferentes, e que devemos ser gratos pelo fato de podermos colher este fruto saboroso e dizer: toma! Prova também! O mais importante da vida, aquilo que nos permite provar o sabor da existência, tenho aprendido por entre essas carteiras, nessas mesas e corredores.
A condição de professor desta Universidade é temporária, passageira. Para nós, que aqui estamos, a única condição que permanece sempre, enquanto vivermos (sempre o velho problema grego da permanência na mudança), é a condição de discípulos: tenho aprendido tanto de Guilherme, Wilba, Alexandre, mas o mais impressionante é o quanto tenho aprendido de meus alunos. E de repente eu descubro que meus alunos são meus verdadeiros mestres. A eles, e quero agradecer-lhes na pessoa de meu aluno Vitor Maia, serei eternamente grato, e se me fosse dado escolher novamente, nunca teria escolhido uma vida diferente dessa: ser professor desta casa.
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