Há três traduções da Crítica da Razão Prática dignas de nota: a de Artur Morão, da Edições 70, esta, de Valério Rohden (que traduziu, também, as outras duas críticas), e a de Fernando Costa Mattos, da Vozes. Já li, há muito tempo, a edição portuguesa de Morão, e agora li a edição de Rohden, de quem já conhecia a tradução da Crítica da Faculdade de Julgar e o livro Interesse da Razão e Liberdade, sobre a filosofia prática kantiana.
É uma boa tradução, que, de algum modo, preocupa-se em retomar a gênese e desenvolvimento do texto, comparando as várias edições publicadas durante a vida de Kant com várias versões posteriores que preocuparam-se em estabelecer criticamente o texto.
Ainda que guarde profunda conexão com a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (sobretudo com a terceira seção deste livro), neste livro Kant pretende discutir as conexões dialéticas entre a moralidade e a felicidade. Segundo Kant, o dever não nos faz feliz (nesta vida), mas dignos da felicidade, o que exige, para além do postulado da liberdade, dois novos postulados, a saber, da imortalidade da alma e da existência de Deus. O primeiro é exigido porque, em uma vida finita, não haveria porque nem como perseguirmos o ideal do aperfeiçoamento moral, já que ele não pode se realizar em tão pouco tempo. O segundo é requerido porque devemos pressupor que, uma vez que nosso desejo se identifique sempre com o dever (o que não pode ocorrer nesta vida), ele deve também se identificar com a felicidade, o que só é possível se houver um Deus que me premia (e não que me retribui) pela minha ação. Como Kant diz, esses dois postulados de modo algum representam a verdade da imortalidade da alma e da existência de Deus, que, para a razão especulativa (objeto da Crítica da Razão Pura), continua sendo problemática e dialética, mas sem isso, é como se a moral acabasse no vazio (parece-me que é exatamente a retomada da ética kantiana, destituída de seus postulados, que desencadeará um pensamento como o de Nietzsche). Mas Kant quer provar que o fundamento da moral é a própria dignidade do dever, independentemente de qualquer retribuição que decorra de nossa submissão a ele. Para explicar porque, considere o seguinte exemplo: suponha que o barco em que estou venha a naufrágio, e outra pessoa, com ambas as pernas engessadas, está perecendo. Quando eu salvo essa pessoa, posso até receber uma medalha por isso, mas isso não é suficiente para explicar porque me arrisco para salvá-la. Na verdade, é a preservação da liberdade em mim que o exige, e é por isso que a moral exige uma estrita obediência do dever pelo simples fato de ele ser devido. Kant deixa claro que o homem simplesmente é constituído de tal modo (aspirando à felicidade e representando o dever), e que somente a razão especulativa poderia investigar porque é assim, coisa que ela não pode fazer legitimamente porque todo conhecimento legítimo ocorre nos limites da experiência.
Vários pontos são corrigidos na Crítica da Razão Prática em relação à Fundamentação da metafísica dos Costumes (por exemplo, na Fundamentação, Kant diz ser um dever buscar a felicidade, na Crítica, que a felicidade é uma aspiração que se constitui em fim).
Também há novidades em relação ao esquema da Crítica da Razão Pura. Como a lei da moral é interna, e tenho uma acesso imediato a ela, a Razão em seu uso prático dispensa uma estética transcendental. No mais, há um paralelo entre as duas (na verdade, entre as três) críticas em sua estrutura.
A Crítica da Razão Prática (apesar da tradução que, pelo estilo e escolha dos termos, facilita muito a leitura) não é um livro fácil e, na verdade, apesar de parecer ser mais fácil que a Crítica da Razão Pura, ela tem mais problemas e, portanto, mais dificuldades do que esta. Sentimos falta no texto de mais notas de rodapé que expliquem melhor essas passagens problemáticas, mas, no mais, é um belo trabalho de tradução.
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